O hospital

 

Photo by sami salim on Unsplash

– Sente-se melhor? – perguntou Ivone enquanto lhe afagava a testa.

 

Despertando do sono, Júlio processou aquela questão o melhor que podia – Melhor? Melhor de quê?! – pensou enquanto tentava situar-se – Onde raio estou eu? Quem é esta? – continuando sem responder levantou ligeiramente a cabeça da almofada e olhou à sua volta.

 

Encontrava-se no que parecia ser um hospital, confuso olhou para a senhora que o interpelava e questionou-a – O que me aconteceu?

 

– Calma – respondeu-lhe amavelmente a simpática enfermeira e com a ajuda de um aparelho levantou lentamente as costas da cama articulada colocando-o praticamente sentado – Beba um pouco desta água – levou-lhe gentilmente um copo com água à boca e Júlio deu dois pequenos goles, de seguida ela pousou o copo numa mesinha que estava ao lado, fechou os olhos e esticou os braços sobre a zona abdominal do paciente, assim permaneceu alguns segundos, até que com uma das mãos e sempre sem lhe tocar iniciou alguns movimentos circulares no sentido dos ponteiros do relógio, depois subiu os braços um pouco mais e ficou com as mãos imóveis sobre a sua zona torácica – Mas que raio me estará ela a fazer? – pensou Júlio ao mesmo tempo que se apercebia estar a ficar bastante mais tranquilo, sentia uma paz incrível a invadi-lo, por fim observou a enfermeira a empunhar as mãos por cima da sua cabeça e a dizer-lhe – Relaxe, já se consegue recordar?

 

Júlio embora confuso sentiu uma espécie de energia a envolvê-lo e nesse momento algumas recordações foram surgindo aos poucos!

 

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Ia de carro e tinha acabado de discutir com a sua mulher, estava furioso, não tolerava a ideia de dar de mão beijada metade da herança que lhe cabia por direito a um irmão bastardo aparecido como por magia, já não bastava a decisão do tribunal e aquela parva ainda lhe dizia para ele não estar assim, que o tal irmão era uma pessoa que precisava mais do que eles e não sei o quê – tretas, o dinheiro é meu!! – e pisou um pouco mais no acelerador.

 

Conhecia bem a estrada, não havia trânsito e estava com pressa para chegar ao escritório do seu advogado, tinha de existir uma forma de dar a volta a isto, o outro bastardo filho da mãe não lhe iria ficar com o dinheiro – isso é que era bom, grande palhaço! – pensou enquanto olhou de relance para o telemóvel, não tinha o Bluetooth ligado – preciso ligar ao doutor para ele esperar por mim – acedeu às definições do aparelho e numa altura em que desviou da estrada o seu olhar por mais tempo do que devia, as rodas do lado direito saíram do alcatrão, num reflexo largou o telemóvel, agarrou no volante com as duas mãos e guinou à esquerda, mas a velocidade era excessiva, perdeu o controle do veiculo e enfeixou-se violentamente numa árvore.

 

Deve ter perdido a consciência e só se lembra de acordar no hospital, tinha muitas dores e havia uma grande azafama à sua volta – Mantenha os olhos abertos, vai ficar bem, está a ouvir-me? – disseram-lhe, mas não conseguiu responder e perdeu a consciência novamente.

 

Não sabe quanto tempo esteve internado e possivelmente o acidente afectou-lhe algo na cabeça pois não se recorda do dia em que teve alta hospitalar, mas felizmente já se encontra em sua casa, ou achava ele que era “felizmente”, pois na verdade estava a iniciar o período mais perturbador da sua vida.

 

A esposa estava tão chateada com a discussão que tiveram que nem lhe dirigia a palavra, nem uma só palavra e isto dia após dia, só chorava pelos cantos e nem um chá lhe preparava!

 

Desesperou-se, gritou até lhe faltar a voz, ia para a janela gritar a quem passava e nada, ninguém lhe ligava absolutamente nenhuma!

 

Para piorar a situação percebe que metade do seu dinheiro foi mesmo entregue ao irmão sem o consultarem ou informarem sequer.

 

Passou a estar em revolta, não sabe quanto tempo esteve naquela situação, mas o ódio cresceu no seu interior e era cada vez maior, estava louco mas não iria ficar louco sozinho, chegou ao ponto de seguir a sua mulher um dia inteiro gritando-lhe aos ouvidos consecutivamente – ODEIO-TE, ODEIO-TE, HEI-DE ENLOUQUECER-TE SUA ESTÚPIDA! – a sua fúria não tinha fim e ela estava a ser forte, embora se mostrasse incomodada e vertesse umas lágrimas de quando em vez, continuava impassível sem lhe falar!

 

Passado um tempo (e tempo foi coisa que deixou de conseguir definir), observou a sua mulher a orar, ela tinha esse hábito quando era mais nova, depois desligou-se e pelos vistos agora teve necessidade de se voltar novamente para Deus, virou-lhe as costas, não lhe estava a apetecer aturar crendices e superstições, no entanto recordou-se da sua avó.

 

Quando era miúdo a avó fazia questão que ele rezasse sempre antes de dormir e ensinou-lhe que ao precisar de ajuda deveria voltar os seus pensamentos para Deus.

 

Estava extenuado e aquela recordação calma de miúdo provocou-lhe instintivamente necessidade de orar também, assim fez, fechou os olhos e virou o seu pensamento para Deus, um Deus em que ele nem acreditava, mas a nostalgia tem destas coisas e assim permaneceu durante longos minutos.

 

Possivelmente adormeceu pois não se apercebeu das visitas chegarem, mas deu por si imobilizado e sem conseguir reagir foi levado de casa contra sua vontade, embora imóvel e sem conseguir dizer palavra, debatia-se interiormente e pensava – Ao ponto que isto chegou! Estou a ser raptado na minha própria casa, foi ela de certeza, ela deve ter preparado tudo isto para se ver livre de mim! – quis gritar por ajuda, mas estaria por certo debaixo do efeito de algum químico, não conseguia emitir um som ou sequer mexer um músculo!

 

Chegaram a uma casa simples, ainda sem conseguir visualizar nenhum dos raptores e bastante confuso, foi colocado no centro de uma sala onde se encontravam várias pessoas sentadas à sua volta – Quem seria esta gente? O que lhe iriam fazer? – decidiu afastar-se do centro da sala e tentou falar, o efeito da medicação já deveria ter passado pois conseguiu e gritou com toda a força – COMO É QUE ELA VOS CONHECEU? QUE QUEREM DE MIM? PAGOU-VOS COM O MEU DINHEIRO? FOI? ODEIO-A, ODEIO-VOS, VÃO PAGAR POR ISTO TODOS VOCÊS!

 

– Calma, está no meio de amigos, não grite – era a primeira vez em muito tempo que alguém lhe dirigia a palavra, ainda baralhado olhou para o seu interlocutor e dispara – Amigos? Mas eu nem vos conheço! E que raio de amigos é que me trariam para aqui contra à minha vontade? Foi a Maria que vos contratou? – A pessoa que estava na sua frente sorriu e respondeu pacientemente – Somos amigos de todos e a nós ninguém nos contrata, ajudamos quem for necessário. Quem é a Maria? Quer dizer-nos?

 

Júlio não sabia o que pensar, nem o que fazer, não confiava nesta gente, não os conhecia, mas eram os primeiros com quem conseguia falar depois de muito tempo – Ora quem é a Maria?! Deves saber, ela faz o que quer com o meu dinheiro, até deu metade ao meu irmão... mas o dinheiro é meu ouviste? E porque raio ninguém me fala desde que saí do hospital? Hum? Foi ela que arquitectou tudo para ver se me enlouquecia, não é?

 

– Amigo, o dinheiro não é o mais importante, deixe lá o dinheiro, o importante agora é tratar-se, sabe que veio até esta casa porque está aqui uma equipa médica que o quer ajudar?! Ora repare aqui do meu lado direito, não os vê?

 

Júlio reparou nesse momento que estavam ali dois senhores de bata branca, aparentavam ser médicos de facto e estavam a sorrir para ele – Sim, claro que os vejo, não tenho problemas de visão, mas isto é confuso... estou a precisar de tratamento porquê? E porque ninguém me falou durante este tempo todo?

 

O interlocutor com voz simpática disse-lhe – Não se preocupe com isso agora, vá com eles e tudo lhe será explicado, fique com Deus amigo – de seguida um dos médicos aproximou-se gentilmente e enquanto lhe aplicava o que parecia ser uma injecção no seu braço direito, disse-lhe sorrindo – bem vindo à pátria espiritual, relaxe pois vai dormir um pouco – ouviu aquilo, ficou ainda mais confuso mas sentiu-se adormecer como que anestesiado.

 

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Olhou para a enfermeira alarmado, sim, agora lembrava-se! Engoliu em seco e com um olhar medroso e voz tremula perguntou – Morri? É isso?

 

Ivone, meiga, afagou-lhe a testa outra vez – Na verdade ninguém morre, continuamos vivos mas noutro estado! – Lentamente começou a baixar-lhe a cama articulada e continuou – Está a readquirir a sua memória rapidamente, isso é bom! Por agora mantenha-se calmo e recupere as forças, teremos muito tempo para falar e tirar todas as dúvidas.

 

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Júlio sentia-se revigorado, embora confuso com o seu novo estado, sentia um alivio indescritível por continuar vivo mesmo depois de morto!

 

Toda a equipa do hospital o tratava impecavelmente bem, no entanto sentia particular afinidade com a enfermeira Ivone com quem mantinha longas conversas, no seu intimo pairavam muitas dúvidas que ansiava por esclarecer, mas sempre que tentava aflorar o assunto a simpática enfermeira habilmente desviava a conversa – Paciência amigo Júlio, cada coisa a seu tempo, primeiro recupere, quando o seu estado anímico for positivo falamos – e assim o tempo foi passando e a paciência de Júlio testada.

 

Meses depois, numa magnifica manhã de sol, Ivone convidou-o a passear no belíssimo jardim adjacente ao edifício, a conversa foi fluindo, até que a curiosidade falou mais alto – Há quanto tempo está aqui Ivone?

 

– Faz 46 anos no próximo mês, é uma ocupação recompensadora que muito agradeço a Deus. Mas em breve voltarei a nascer.

 

– Vai voltar a nascer? Como assim?!

 

– Todos nós voltamos – respondeu Ivone ao mesmo tempo que indicou um banco numa sombra para se sentarem – o Júlio está quase a ter alta, depois terá hipótese de estudar, ter uma ocupação e mais cedo ou mais tarde irá renascer num novo corpo, a vida é só uma, mas temos várias existências – e piscou-lhe o olho.

 

Aquilo era completamente novo para si, ele que nunca tinha sido religioso e nem em Deus acreditava, via-se agora mais vivo do que nunca no que julgava ser o céu, mas no entanto não era um anjo, não tocava arpa e pelos vistos a teoria de reencarnação era verdadeira!! Não fosse estar a viver isto na primeira pessoa e isto tudo lhe parecia um filme.

 

Olhou suplicante para a amiga enfermeira e verbalizou o seu estado de alma – Como é que isto pode ser? Sinto-me tão vivo! Mantenho o meu corpo, sinto-me, olhe aqui – e exemplificava com o seu dedo indicador a premir o joelho direito.

 

Ivone sorriu e iniciou a explicação com voz meiga e paciente – É normal, este é o nosso corpo espiritual, aquilo que os orientais chamam corpo astral, que os espíritas chamam perispírito e que de uma forma abstracta as várias religiões chamam de alma. Os que não acreditam não concebem a sua existência, já os crentes julgam que é algo imaterial, no entanto é alguma coisa, como constata continuamos a ser algo, mas num outro estado que a ciência oficial ainda não descobriu e os que vivem mergulhados no corpo de carne não conseguem ver, no entanto nós existimos!

 

Júlio recordou-se dos tempos mais recentes em que se julgava louco, dos longos meses em que ninguém o via nem ouvia em sua casa – Mas e eu? Já depois de ter morrido também só via o mundo material! Como é isso?

 

– Passou a sua vida focado na matéria, para si não existia nada depois da vida, programou-se a si próprio durante todos os anos desta sua última vida para a existência exclusiva da matéria, depois não admira que era matéria tudo o que via, vários amigos o foram tentando ajudar ao longo do tempo, mas só quando já em desespero o Júlio se pôs a orar e consequentemente a sua vibração subiu um pouco é que lhe conseguiram valer, ainda assim foi necessário recorrer a uma reunião mediúnica que estava a decorrer perto do local para conseguir comunicar com o Júlio, lembra-se? Aqueles amigos que falaram consigo naquela casa? O Júlio nem se apercebeu, mas falou através de uma médium e aquele grupo de pessoas simples limitou-se a ajudar fazendo-o focalizar pela primeira vez nos amigos cá deste lado da vida.

 

Na sua recordação reviu novamente esse momento:

 

"(…) sabe que veio até esta casa porque está aqui uma equipa médica que o quer ajudar?! Ora repare aqui do meu lado direito, não os vê?"

 

– Mas eles sabem disto tudo? – Perguntou.

 

– Tem uma ideia aproximada, são pessoas como as outras, também têm defeitos e qualidades, mas já têm presente que a vida continua e vão ajudando no que podem, como vê, no seu caso e em muitos outros conseguiram ser úteis! – respondeu-lhe Ivone enquanto se levantava – Vamos regressar ao hospital? Por hoje já teve bastantes novidades teóricas.

 

Júlio acedeu ao convite, de facto sentia-se completamente ignorante e estava fascinado com tudo o que lhe estava a acontecer, queria aprender mais e mais, no entanto muitas outras questões surgiram-lhe na mente – Então e porque não me lembro de outras vidas? E porque não vejo os meus familiares e amigos que morreram antes de mim?

 

A enfermeira entrelaçou o seu braço no braço dele – Calma, as recordações de vidas passadas irão surgir quando estiver preparado para lidar com elas - e enquanto caminhavam em direcção ao edifício acrescentou com alegria – Segundo as indicações que recebi esta manhã, vai ter umas visitas especiais hoje – olhou-o divertida e genuinamente feliz continuou – Aliás, consegue reconhecer aquela senhora ali à frente?

 

Júlio olhou na direcção indicada e dispara – Mãe?!?!

 

Sim – confirmou a enfermeira com uma gargalhada amável – talvez seja melhor acelerar o passo!

Ficção
14.4.22
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