A corajosa desenrascada

 

Photo by Joran Quinten on Unsplash

De lamparina acesa, abriu lentamente a porta dos seus aposentos, saiu e para não fazer barulho decidiu deixa-la só encostada seguindo pelo longo e lúgubre corredor.

Ao fundo, virou à direita, passou pela cozinha enorme reparando que as brasas utilizadas para preparar o jantar ainda emitiam um ténue calor, subiu as escadas de serviço ao refeitório, passou pela direita das duas compridas mesas e utilizou a passagem que dava acesso à capela pelas traseiras do altar (assim não tinha de sair à rua), o corredor era estreito e sem janelas, mas conhecia bem o espaço.

Chegada à porta que dava acesso à capela, destrancou o ferrolho e abriu a porta lentamente sem emitir quaisquer sons, sorrindo ao perceber que o azeite utilizado nas dobradiças horas antes, resultava!

Rapidamente dirigiu-se à imagem de Jesus crucificado ajoelhando-se no chão de pedra frio, pousou a lamparina junto a si e entrelaçando os dedos das duas mãos, colocou-as um pouco acima da sua cabeça, baixou-se em suplica, dizendo baixinho:

- Perdoa-me Senhor porque pequei.

Passou longos minutos a repetir ladainhas e a deixar as lágrimas escorrerem livremente pela face, por fim benzeu-se perante a imagem, pegou na lamparina e continuou o seu plano.

Voltou ao refeitório pelo mesmo caminho, mas desta vez dirigiu-se à porta que dava acesso ao pátio, parou.

A partir deste momento não teria grande controlo sobre o barulho e podia alertar alguém, assim, tinha de ser rápida.

Abriu a porta para o exterior sentido de imediato o ar frio da neve, fechou a porta devagar atrás de si e dirigiu-se às cavalariças, ao entrar passou carinhosamente a mão no cavalo do Monsenhor que se encontrava no convento a recuperar de uma enfermidade, continuando em direcção às traseiras onde tinha escondido o que pretendia, desviou com esforço alguns fardos de palha e lá estava a roupa de homem que conseguira reunir nas últimas semanas.

Despiu-se num ápice, vestindo aquelas peças e para não perder tempo não se coibiu de deixar o hábito espalhado ali mesmo, de seguida selou o cavalo e por fim colocou um lenço a proteger o nariz e a boca do frio.

Acariciou o seu ventre que ainda não apresentava alterações, e de queixo tremulo de emoção ainda concluiu em pensamento que nenhum pecado, dificuldade, ou probabilidade de morrer à fome escorraçada pela sociedade, a iria impedir de tentar criar o ser que vinha a caminho!

Levou a mão ao bolso interno do casaco confirmando que tinha o crucifixo, benzeu-se e sem pudores, montou o cavalo à homem (ainda se lembrava de quando era Maria rapaz em pequena), olhou de relance para as vestes do que tinha sido e não era mais, desatando a galope em direcção a um destino inserto, mas por certo longe.

Ficção
28.4.22
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