O dia do recomeço

 

Photo by Dimitri Houtteman on Unsplash

 

Deixe a sua mensagem a seguir ao sinal - bip.

- Olá Guida, sou eu. Troquei o turno com um colega e estou com esta sexta livre, queres ir jantar? Quando ouvires isto telefona-me. Beijo.

Gustavo desligou o telefone, abriu o portátil e enquanto o computador iniciava passou os olhos pela estante vidrada onde se encontrava a máquina fotográfica religiosamente guardada - faz hoje um ano - pensou.

Só por ter recordado a existência daquele dia sentiu o coração acelerado, respirou fundo, colocou a mão no rato do computador e num impulso acedeu à pasta das fotografias, dentro desta procurou a pasta com o nome Mistério, abriu-a e contemplou as miniaturas das seis fotografias lá presentes.

Abriu a última, os olhos inundaram-se de lágrimas prontas a saltar, controlou-se, avançou uma a uma lentamente, até chegar à primeira, onde se deteve demoradamente.

Inacreditável - e nesse momento deixou de viver o presente, de olhos vidrados olhava a fotografia mas já não a via, dentro da sua cabeça revivia aqueles dias pretéritos!

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Há um ano estava cansado. Cansado de lutar, cansado de mentir, cansado de viver. As dívidas, os problemas com a ex-mulher e mais recentemente o concretizar do pior cenário: estava desempregado.

Secretamente iniciou um plano para terminar com tudo. Numa primeira fase nem a si admitiu o que estava a arquitectar, mas agora tinha chegado ao seu limite, o turbilhão em que tinha mergulhado ganhou uma dimensão avassaladora, o seu pensamento era rodeado por uma espécie de nevoeiro que lhe tolhia o raciocínio, tudo se resumia a um mata-te, acaba com tudo, é a única saída!

No dia em que estabeleceu como sendo o último dia da sua existência, levantou-se cedo, deixou a casa impecavelmente arrumada e saiu. Para trás não ficou nenhuma carta, nem uma só explicação num qualquer apontamento, nada.

A ponte velha era o local ideal, deixada ao abandono depois de diagnosticado um problema num dos pilares, nunca ninguém andava por ali.

Deixou o carro na berma da estrada ainda um pouco longe e fez o resto do caminho a pé. Não reparou na tonalidade lindíssima que o dia apresentava, não reparou no cantar dos pássaros, não reparou nas paisagens, enquanto caminhava pegou no smartphone e começou a escrever uma mensagem de despedida.

Não, isso é estúpido - pensou, e guardou o telemóvel.

Mais à frente teve o mesmo impulso, mas desistiu novamente, apagou a mensagem dos rascunhos e desligou o aparelho.

Tinha chegado à ponte, passou a corrente ferrugenta que a fechava e dirigiu-se lentamente até ao centro (o ponto mais alto), ficou ali parado, imóvel durante uns minutos.

Mais do que nunca os pensamentos destrutivos surgiam-lhe na mente intensa e desordenadamente, com as mãos apoiadas no gradeamento reviu mentalmente alguns episódios da sua vida, mas conscientemente afastou-os para longe, tinha chegado a hora.

Fechou os olhos preparando-se e ouviu um clique algures do seu lado direito, aquele clique despertou-o, olhou e uns metros adiante (perto da corrente à entrada da ponte) estava um homem, alto, louro, com ar de turista a tirar fotografias à paisagem.

Ai! Um tipo com azar tem azar até ao fim! Num local habitualmente deserto, estava o raio de um turista a tirar fotografias! Logo hoje! - Decidiu controlar-se, disfarçou e olhou também para a paisagem afastando-se ligeiramente do abismo.

O homem aproximou-se sem ligar muita importância a Gustavo, junto a este tirou uma nova fotografia e de seguida, com um olhar simpático e sorriso franco dirigiu-lhe os bons dias, perguntando-lhe se não se importaria de lhe tirar uma fotografia naquele local magnifico para mostrar aos amigos.

O tipo fala português correctamente, tem pinta de estrangeiro mas pelos vistos é tuga - contrafeito, pegou na máquina ao mesmo tempo que pensava - caraças, deixa-me despachar isto para ver se este gajo se vai embora de uma vez!

Enquadrou o turista o melhor que pode, tirou duas fotografias (não fosse uma ficar tremida) devolvendo-lhe a máquina de seguida.

- É maravilhoso, não acha? Disse-lhe o homem ao mesmo tempo que respirava fundo e olhava à volta - E ainda há quem não acredite que Deus existe!

Estou a ver... este acredita em histórias da carochinha - pensou Gustavo.

Naquele momento olhou-o com mais atenção: vestia umas calças de ganga, trazia uma bolsa própria para a máquina fotográfica a tiracolo, por cima de um pólo branco, onde reparou estar estampada uma cruz em azul-celeste juntamente com as iniciais L. S. M. - Deve ser um crente idiota.

- Sabia que já temos homens de ciência a defender a existência de vida após a morte?

- Pseudocientistas - atalhou Gustavo sem muita paciência.

- Peço desculpa, mas reafirmo, de ciência! Por exemplo o Dr. Ian Stevenson ou o Dr. David Fontana, entre outros, nunca ouviu falar?

- Não.

- Pois devia, existem estudos muito interessantes por aí. Nos dias de hoje e com a informação que temos disponível é fácil obtê-la.

Com algum desdém, mas com curiosidade para saber qual a teoria do turista para aquilo que ele se preparava para fazer, decidiu questionar:

- Então existe quem defenda racionalmente que a vida continua depois da morte? - sorriu com ar de gozo - E os suicidas? Também vivem?

- Esses coitados, se soubessem onde se estão a meter não o fariam, já parou para pensar?

Aquele tipo de argumento fazia-lhe ferver o sangue - Mas está a falar de quê? Do inferno? - perguntou Gustavo um pouco agressivo e algo agastado com o rumo da conversa.

- Não homem, isso não existe, no entanto há quem defenda que se percepcionam num verdadeiro inferno! Pense comigo: se a vida continua, os problemas que tinham continuam do lado de lá da vida, mas agora têm mais um a juntar (suicidaram-se). O peso na consciência pode ser um verdadeiro inferno.

Este coitado é pior que eu, há com cada maluco, vejam bem a teoria deste marmanjo! Gustavo decidiu que voltaria mais tarde e referiu ao desconhecido que ia andando.

- Espere aí homem, vamos tirar uma fotografia os dois.

Sem ter tempo de reacção, Gustavo viu-se abraçado pelo braço esquerdo do homem, enquanto o direito esticado para a frente preparava-se para tirar uma fotografia a eles próprios - Sorria homem - dizia o turista bem disposto - clique - fotografou.

Logo de seguida solicitou educadamente a Gustavo para aguardar mais um instante, estendeu-lhe a máquina fotográfica e pediu que a segurasse, tinha de apertar os cordões de um dos ténis.

Contrariado, já sem paciência para o aturar... mas acedeu ao pedido, enquanto o turista se agachou ao seu lado, suspirou e olhou para na outra direcção. Nesse preciso momento viu um carro da policia a parar junto à corrente no inicio da ponte, um agente saiu de dentro do veiculo e gritou-lhe:

- SAIA DAÍ, NÃO SABE QUE A PONTE PODE CAIR?! VENHA PARA AQUI E TIRE AS FOTOGRAFIAS DA MARGEM.

- Temos de ir - referiu ao mesmo tempo que se voltava novamente para o turista e estendia a máquina fotográfica para... para... o vazio?!

Pulou de susto, o homem que estava junto a si uns segundos antes tinha desaparecido! Olhou rapidamente para um e outro lado da ponte, não estava ninguém! Confuso correu para o gradeamento e olhou para baixo, nada, lá em baixo só um fio de água escassa a serpentear pelo meio das rochas desertas!

- ESTÁ-ME A OUVIR? - gritou o agente

Espavorido Gustavo correu em direcção à corrente onde estava o policia e questionou-o - Viu o senhor que estava aqui comigo?

- Está a brincar com um agente da autoridade? Eu já o tinha visto lá do fundo a tirar fotografias sozinho! Sente-se bem?

Atónito com aquilo que acabara de ouvir, olhou para a máquina fotográfica e ligou-a.

No menu procurou as fotos, existiam seis. Abriu a última - estava sozinho na imagem! Sozinho?! O coração batia-lhe descontroladamente, decidiu verificar as duas fotografias que tinha tirado ao turista e inexplicavelmente ambas estavam magnificas, a paisagem era excelente, mas ninguém aparecia na imagem!

Fitou o policia e percebeu que este estava prestes a considera-lo maluco, tentou controlar-se, sorriu nervosamente e explicou que se tinha expressado mal, o que ele queria dizer é que tinha vindo à procura de um amigo mas que se tinham desencontrado, pediu desculpa por ter estado na ponte, agradeceu e seguiu apressadamente de volta ao carro. Ali chegado voltou a ligar a câmara, tinha uma paixão por maquinas DSLR e sabia que estas normalmente exibem o total de fotografias tiradas ao longo da sua existência, mais ou menos como um conta quilómetros de um automóvel.

Esta tinha um total de seis fotografias! Só seis. Era novinha em folha!

Estaria maluco? Não, não, foi demasiado real, recusava-se! Decidiu rever as fotos novamente, a última que o turista tinha tirado a ambos quando o abraçou, só ele aparecia, mas via-se perfeitamente os seus dois braços ao longo do tronco, impossível ter tirado a fotografia a si próprio.

Depois reviu novamente as duas que tirou ao homem a pedido deste, só paisagem, não aparecia ninguém!

Faltavam três: a terceira era a tal que o turista tinha tirado à paisagem junto a si antes de lhe dirigir a palavra, era uma fotografia normal, nada a assinalar, a número dois foi aquela que o despertou para o facto de não estar sozinho, ao visualizar a fotografia verificou que o plano o tinha apanhado, lá estava ele no lado esquerdo da foto, olhos fechados, expressão de extremo sofrimento, com os braços apoiados na grade da ponte, o resto da imagem (uma grande angular) apanhava as árvores frondosas ao longo da margem do lado de lá e a luz do sol à direita criava um efeito lindíssimo espalhando raios de luz ao longo de toda a fotografia.

E a primeira? Clicou para a visualizar e o que apareceu na imagem deixou-o momentaneamente sem respirar, o ecrã LCD era demasiado pequeno para perceber todos os detalhes, ainda assim e com a ajuda do zoom viu o suficiente para ter a necessidade de se dirigir rapidamente para casa, precisava de ver aquilo num ecrã com um tamanho decente.

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O som de uma mensagem recebida despertou-o das suas recordações, pegou no telemóvel. Era a Guida: "Estou em reunião, não posso atender. Adoraria ir jantar contigo, vens buscar-me às 19h?", olhou para o relógio, eram 18h, dava tempo: "Combinado. Aí estarei. Adoro-te :)".

Pousou o smartphone e olhou novamente para a estante vidrada, dirigiu o olhar para dois livros lidos sofregamente e guardados junto à máquina fotográfica, reviu os títulos: "Where Reincarnation and Biology Intersect" e "Is There An Afterlife?: A Comprehensive Overview of the Evidence".

Por fim fixou o olhar no monitor, a foto ali estava, com o dedo indicador acariciou o ecrã, como se pudesse tocar naquele momento congelado no tempo, não fazia a mínima ideia do local onde aquele instante teria sido fotografado, mas a data do ficheiro era da véspera do dia em que se dirigiu à ponte.

Reviu-a com atenção, como se fosse a primeira vez: era uma fotografia de grupo tirada no que parecia ser um forte dia de nevoeiro.

Em frente a uma arcada estavam dezanove pessoas, não conhecia nenhuma mas inexplicavelmente sentia um carinho por todas elas. Embora não conhecesse ninguém, reconhecia perfeitamente quem estava na primeira fila ao centro do grupo: era o turista da ponte!

Todos eles estão uniformizados com longos aventais brancos, ostentando ao peito uma cruz azul-celeste ladeada pelas iniciais L. S. M.

Já por cima, no topo da arcada lê-se "Departamento Hospitalar" e em jeito de subtítulo "Hospital Maria de Nazaré".

Por fim, os olhos detiveram-se na faixa presente aos pés do grupo e lá estava a frase que tanto lhe ecoou na cabeça ao longo dos últimos meses:

FORÇA AMIGO - DESISTIR, NUNCA

Uma lágrima correu-lhe face abaixo, limpou-a rapidamente e sorriu. Desligou o computador, pegou num presente que tinha comprado para a Guida e saiu.

Fosse lá o que fosse, estava feliz!

Ficção
22.12.20
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