Uma verdadeira história de amor

 

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 – Avô, teve mais namoradas sem ser a avó?

O velho Silva sorriu bem disposto ao ouvir a pergunta do neto.

– Sim Martim, o avô teve 2 ou 3 namoradas antes da tua avó – e piscando-lhe o olho bem disposto, acrescentou – sabes, não fui sempre um velho feio, quando era novo fui um rapaz jeitoso!

– Mas antes da avó, teve alguma namorada que tivesse amado verdadeiramente?

Silva afagou a barba com a mão direita enquanto o seu pensamento recuou talvez uns 50 anos, tossiu como para disfarçar e dirigindo o olhar inquiridor ao neto adolescente, decidiu questionar – porquê essa pergunta?

– Oh, então porque a avó já partiu há muitos anos e o avô está sozinho! Já viu se agora redescobrisse esse amor do passado? Servia-lhe de companhia diária e dormia com os pés quentes no inverno!

– Ai rapaz, rapaz – este neto era um desbocado e dizia tudo o que lhe vinha à cabeça, mas tinha bom coração e divertia genuinamente o velho Silva – mas tu não ganhas juízo?! O avô já não está para chatices com esta idade, para além do mais para aquecer os pés tenho a minha botija de água quente! – argumentou antes de dar uma gargalhada com vontade.

– Vá lá avô, pela sua cara já vi que existiu alguém especial – sentou-se rapidamente ao lado dele como se fosse um aluno aplicado pronto para ouvir uma matéria importante – e eu gostava de saber a história, acho que uma boa história de amor é algo de belo.

– Não sei se poderei chamar uma história de amor a isto.

– Ah-ah – disse o Martim ao mesmo tempo que apontou o dedo indicador ao seu avô – eu sabia que existia aí qualquer coisa, a expressão do avô depois de eu lhe fazer a pergunta desmascarou-o.

O velho Silva afagou novamente a sua barba, recordou com mais detalhe o passado longínquo – Sabes Martim, o tempo passa a voar, no entanto quando recordamos coisas da nossa juventude até parece que foi noutra época, parece que já foi no Século XVIII – e percorreu mentalmente alguns factos que o marcaram. De seguida apoiou os braços na cadeira e levantou-se com a dificuldade própria da idade – anda comigo, vamos lá acima ao sótão.

Martim seguiu o seu avô com interesse, subiram as escadas até ao sótão, o velho Silva abriu a porta, entrou, acendeu a luz e dirigiu-se a um cofre que estava no canto direito do amplo espaço – entra e fecha a porta – disse ao neto enquanto retirava um porta chaves do bolso, escolheu uma chave e inseriu-a na fechadura do cofre, rodou a combinação do código e puxou o manipulo abrindo a pesada porta – um dia que eu emigre para o vale das tabuletas, ficas a saber que a chave deste cofre está no meu porta chaves, é a maior e com o ar mais antigo. O código para abrir esta carcaça velha é o 6280, é fácil de decorares pois é o mesmo código do sistema de alarme que utilizamos – sorriu ao neto, voltou-se novamente para o cofre e retirou uma pasta gorda cor de tijolo, esta estava com algum pó, soprou-a cuidadosamente e dirigiu-se para um sofá velho na outra ponta do sótão, pousando a pasta em cima de uma pequena mesa situada em frente ao mesmo – anda daí, senta-te aqui ao meu lado.

Martim assim fez, sentou-se ao lado do seu avô fascinado com o que estaria dentro daquela pasta, o velho Silva abriu-a e enquanto retirava o que esta continha disse ao neto – a tua avó nunca chegou a ver isto, não valia a pena ela sofrer com algo do passado. Aliás, agora que penso nisso, tu serás a primeira pessoa a quem mostro este meu legado – em cima da mesa estava um molho de cartas escritas à mão bem como umas fotografias.

Ainda antes de se atrever a olhar mais detalhadamente alguma daquelas relíquias, Martim constatou que tudo aquilo estava amarelado pelo tempo. Por respeito manteve-se imóvel sem tocar em nada antes que o avô desse ordem.

O velho Silva começou por pegar num molho de fotografias a preto e branco, visualizando uma por uma lentamente. Por vezes esboçava pequenos sorrisos com uma expressão de saudade no rosto, à medida que via a próxima fotografia passava a anterior ao Martim. Este verificou que em todas estava a mesma mulher, com um ar jovem, magra, tinha uns traços verdadeiramente bonitos, na última apareciam os dois numa montagem ao estilo antigo, em que a cara de cada um aparecia dentro de um coração, corações esses que se entrelaçavam num laçarote – fogo, que montagem medonha, mas o avô estava mesmo novinho nesta fotografia – pensou.

Nesse momento reparou que o seu avó estava a ler uma das cartas, com ar sério e a passar a mão pela barba como tantas vezes fazia, percebeu que por detrás daquele ar neutro estava um homem emocionado – essas cartas são todas dela? – perguntou – sim, trocávamos muita correspondência, obviamente aqui só estão as cartas que ela me enviou, mas em muitas delas consegues deduzir o que terei escrito para obter aquelas respostas – e piscou-lhe o olho a sorrir.

Martim estava morto de curiosidade, mas estava reticente em entrar na privacidade do avô – o que está nas cartas? – perguntou meio a medo e a sentir-se idiota por fazer uma pergunta com resposta tão evidente.

– O que é habitual quando duas pessoas enamoradas trocam cartas, já dizia o poeta: 

“Todas as cartas de amor são ridículas. Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas. (…)”*

O jovem estava a achar o máximo a história, sem cerimónias deixou sair mais uma questão – E como se conheceram?

Saiu um sorriso franco e cheio de felicidade de dentro daquela barba quase totalmente branca e espessa, Silva recostou-se no sofá e com os olhos a brilhar iniciou a verbalização da sua memória – naquela época eu trabalhava num local perto de uma paragem do eléctrico, ia e vinha do trabalho todos os dias sempre de eléctrico, até que num certo mês durante o verão, na viagem para casa, apercebi-me de uma jovem que me encantou de imediato.

Nos dias seguintes vi-a sempre à ida para casa, viajava sozinha, entrava algures antes de mim e continuava depois de eu sair. Nunca a tinha visto antes e pensava como era possível uma beldade daquelas me ter passado despercebida durante tanto tempo, um dia quando entrei no eléctrico, reparei que o lugar ao lado dela estava vago, aproveitei de imediato e sentei-me aí mesmo.

Ela estava a ler um livro, disfarçadamente tentei espreitar e perceber que livro seria, era um livro de poesia da Florbela Espanca, mas não terei sido muito discreto pois ela reparou, baixou o livro para o seu colo e sem papas na língua perguntou-me com ar de gozo – gosta de Florbela Espanca? – tive sorte, não só gostava como sabia alguns poemas de cabeça, pelo que declamei um de imediato – olhou para o neto visivelmente bem disposto e riu-se, de seguida olhou para cima, como que a puxar pela memória e declamou o dito poema novamente tantos anos depois:

“Se tu viesses ver-me hoje à tardinha,
A essa hora dos mágicos cansaços,
Quando a noite de manso se avizinha,
E me prendesses toda nos teus braços...

Quando me lembra: esse sabor que tinha
A tua boca... o eco dos teus passos...
O teu riso de fonte... os teus abraços...
Os teus beijos... a tua mão na minha...

Se tu viesses quando, linda e louca,
Traça as linhas dulcíssimas dum beijo
E é de seda vermelha e canta e ri

E é como um cravo ao sol a minha boca...
Quando os olhos se me cerram de desejo...
E os meus braços se estendem para ti...”**


Olhou novamente para o Martim enquanto afagava outra vez a barba, abriu um sorriso bem largo e concluiu – fiz um sucesso, foi o inicio de uma bela amizade!!

O neto estava completamente rendido – que bonito avô! E depois? Deduzo que passado algum tempo começaram a namorar... quanto tempo durou?

– Nunca chegámos a namorar, até te digo mais: nunca chegámos a dar um beijo sequer!

– O quê?! – Martim agora estava completamente baralhado – como foi isso?!

– Bom, em primeiro lugar ela estava cá só de férias, tinha vindo passar um mês a casa de um tio e passado duas semanas voltou para a sua cidade, mas mais importante do que isso, eu já namorava com a tua avó...

O jovem arregalou os olhos surpreso – foi infiel à avó?!

– Fisicamente não, como te expliquei nunca demos sequer um beijo – reparou que o adolescente estava confuso a olhar para todas aquelas cartas e fotografias espalhadas em cima da pequena mesa – desiludi-te?

– Não. Não avô, mas estou confuso! Eu comecei por perguntar se o avô teria alguma namorada no seu passado que tivesse amado verdadeiramente, confesso que não estava à espera que me fosse contar a história de uma rapariga com quem nunca namorou e que já conheceu depois da avó – mas rapidamente pensou que não era ninguém para julgar. Sorriu – desculpe, continue, estou curioso.

– Nos dias que se seguiram à minha declamação trocámos moradas, claro que tive o cuidado de lhe dar o endereço do meu trabalho – sorriu para o neto com a expressão de quem fez uma travessura – e passámos muito tempo a correspondermo-nos, na época não existia Internet. Sabes Martim, a escrita consegue ser um meio de comunicação muito forte, os sentimentos escritos ganharam força e quando dei por mim estava apanhadinho de todo!

– E porque não foi atrás desse amor?

– Na verdade nunca cheguei a ter a certeza de ser correspondido, nas poucas vezes que nos conseguíamos ver ela manteve-se sempre na defensiva, muito do que me escrevia nunca chegou a ser verbalizado. Penso que do lado dela nunca existiu mais do que um sentimento de amizade, ou então talvez estivesse confusa, carente, sem ninguém que lhe desse a atenção que lhe fui dispensando.

– Ou talvez a rapariga tivesse juízo e estivesse com medo que o avô lhe estivesse a dar a canção do bandido e a enganasse – interrompeu Martim.

O velho Silva olhou para o seu neto divertido, este estava na idade dos sonhos em que tudo era possível – pois, é uma hipótese, mas nunca vou saber... ou talvez numa próxima existência nos encontremos outra vez noutras condições, sabes que há quem defenda a teoria da reencarnação não é? – e mais uma vez sorriu descontraído a passar a mão pela barba.

– E quanto tempo durou essa correspondência e encontros de longe a longe?

– Alguns anos, a malta da minha geração era paciente!

– Mas, a história é só isso? Como é que acabou essa correspondência?

– Aqui o teu velho foi ficando um pouco desiludido... como te referi, de quando em vez conseguia vê-la e como de minha parte tinha sido completamente transparente, estava sempre na expectativa de que ela fizesse o mesmo, ou seja, que me verbalizasse com todas as letras não sentir nada por mim, ou pelo contrário, que sentia, mas que não podia acontecer nada, fosse porque eu era comprometido, ou por outro motivo qualquer, mas isso nunca aconteceu! Por vezes parecia que ia dizer uma dessas coisas, mas entretanto mudava o curso da conversa, de outras parecia que ia dizer o inverso, mas nunca chegava a verbalizar nenhuma delas, talvez ela tivesse medo de me perder como amigo caso me dissesse que não sentia nada além de amizade, ou então, se gostava mesmo de mim teria talvez medo que eu fosse um bandido como tu referiste. Ainda soubemos um do outro durante uns anos, mas depois o tempo, a vida e a distância fez-nos perder o rasto dos nossos mundos.

– Mas avô, isso não é uma história de amor, há pouco chegou-me a dizer que possivelmente não era correspondido, como é que considera que isto foi uma história de amor?

O velho Silva pegou numa foto da jovem e olhou-a longamente. Depois desviou o olhar para o exterior da casa através da pequena janela situada ao seu lado e concluiu:

– Para mim foi. Sempre! E isso basta-me.

--//--

Desta vez sinto necessidade de endereçar um agradecimento especial a um amigo e dar uma pequena explicação sobre esta história.

Um dia no fim da minha adolescência um velho amigo mostrou-me uma pasta fechada a sete chaves. Nessa pasta estavam cartas e fotografias antigas que ele trocou ao longo de vários anos com o amor da sua vida.

Essa tarde marcou-me profundamente, fazendo-me perceber que os contos de fadas não acontecem só na ficção e as histórias de amor arrebatadoras acontecem mesmo!

A ti grande amigo, agradeço essa partilha que guardarei para sempre na minha memória.

Nesta história apresentada no Cliques & Letras só a pasta, as cartas, as fotografias e a forma como se conheceram no eléctrico é verdadeira (se bem que, por já terem passado muitos anos, na realidade não tenho a certeza se o livro e o poema declamados foram de Florbela Espanca, mas penso que sim), tudo o resto é pura ficção.

Na história real ela não estava a passar um mês de férias, ao fim de um tempo acabaram por se envolver e viver o seu amor às escondidas! Na história real ele era solteiro e ela era casada (quem se atreve a atirar a primeira pedra?!), posteriormente o destino pregou-lhes a partida de os colocar a viver em continentes distintos e o resto são cartas…

Por fim, o autor destas linhas confessa ter o secreto desejo de que histórias de amor semelhantes abundem por aí (mas com um final feliz), dá-me gozo imaginar que sim!

* Álvaro de Campos, in "Poemas" - Heterónimo de Fernando Pessoa
** Se Tu Viesses Ver-me…, in "Charneca em Flor" - Florbela Espanca

 

 

 

 

Ficção
20.4.23
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