O mecânico cristão

 

Photo by Tekton on Unsplash

Levou a mão direita à testa enquanto dizia - em nome do Pai - desceu a mão ao peito - do filho - deslocou-a para o ombro esquerdo - e do Espírito Santo - ao mesmo tempo que levou a mão ao seu ombro direito.


Acto continua tirou o joelho esquerdo do chão e ao levantar-se beijou a sua própria mão enquanto baixara ligeiramente a cabeça em sinal de respeito.


Hesitou. 


Fechou os olhos e mentalmente pediu a Deus com toda a sua fé por discernimento, protecção e que continuasse a ser o homem justo e bom cristão como tinha sido até então.


Olhou com humildade e tremendo respeito para a imponente imagem de Jesus Cristo crucificado situada no topo da igreja logo após o altar.


Sacudiu a cabeça.


Levou as mãos à cara e confirmou que o passa montanhas estava bem colocado - vamos embora - pensou.


Pegou na arma automática que tinha pousado temporariamente no banco corrido e olhou na direcção da parede oposta tentando ignorar os gritos e expressões de pânico dos crentes que tinha feito reféns minutos antes, foi até ao altar e puxou violentamente o pano bordado e imaculadamente branco que o cobria sem dar importância ao missal e restantes objectos a espalharem-se no chão como consequência.
 

Dirigiu-se ao cadáver que jazia ensanguentado no chão junto à porta da sacristia, tapando-o com o pano do altar.


Olhou de relance para a porta da igreja a confirmar que a tranca estava colocada nesse momento os reféns começaram a rezar o terço com voz trémula e algumas lágrimas à mistura, reparou que uma senhora das mais idosas tinha-se urinado, o seu coração estremeceu de compaixão, mas não tinha tempo de a auxiliar no momento.


Tinha de agir rapidamente, enquanto tirava a mochila das costas decidiu juntar-se à oração do terço - Avé Maria cheia de graça - pousou a mochila na sua frente e abriu o fecho de correr - bendita sois vós entre as mulheres - retirou um laptop e colocou-o no chão junto ao cadáver - bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus - foi novamente à mochila e retirou duas granadas de gás lacrimogéneo pousando-as ao seu lado - Santa Maria mãe de Deus - repetiu e tirou mais duas granadas de gás lacrimogéneo - rogai por nós pecadores - e finalmente retirou uma pequena cruz e beijou-a com deferência - agora e na hora da nossa morte, Amen - voltou a colocar a cruz na mochila e gritou para os reféns - PEÇO DESCULPA, O QUE VAI ACONTECER A SEGUIR NÃO É FATAL - enquanto gritava esta sentença colocou duas das granadas nos bolsos do casaco, colocou a mochila e a arma a tiracolo, pegou nas outras duas granadas e dirigiu-se em passo apressado em direcção da sacristia, abriu a porta e já na ombreira tirou a espoleta de uma das granadas e atirou-a na direcção da porta principal da igreja, aquelas 12 almas gritaram e alguns começaram a correr em direcção à sacristia, já o previa, rapidamente tirou a espoleta da segunda granada e lançou-a na direcção deles, fechou a porta e trancou-a afastando-se rapidamente em direcção de uma estante cheia de livros. 


Conhecia bem o espaço, na terceira prateleira à direita colocou a mão por cima dos livros à procura da alavanca - bolas, isto com luvas é difícil - puxou-a e sentiu o estalido mecânico, empurrou a estante para a direita expondo o corredor escuro na sua frente, pousou a arma, correu para a escrivaninha situada à sua esquerda e tentou abrir a segunda gaveta, mas estava trancada!


Do lado de fora os gritos são intensos, alguém conseguiu alcançar a porta da sacristia e estava a tentar arrombá-la, numa fracção de segundos viu que um pouco de gás lacrimogéneo estava a passar pela fresta da porta, não tinha mesmo muito tempo, puxou violentamente a gaveta segurando a escrivaninha com o pé, partiu-se a fechadura e a gaveta saiu disparada, caiu desamparado e aleijou-se - FODA-SE! - o conteúdo espalhou-se na sala, olhou desesperado em todas as direcções - ali está - recolheu o mini-computador, o rooter e uma pequena antena - estes transmissores cada vez são mais pequenos - pensou ao colocar tudo na mochila, retirou a máscara passa montanhas e também a atirou lá para dentro, colocou-a às costas, pegou na arma e deu uma rajada na janela, partiu-se tudo e ficou escancarada - sorriu - lá fora continuavam gritos mas já não estavam a tentar arrombar a porta, já sentia os olhos a arder com o gás - aqueles desgraçados ali dentro devem estar aflitos - afastou esse pensamento e correu para a passagem escura, puxou a estante de livros que servia de porta, mas antes de a fechar totalmente atirou as outras duas granadas de gás lacrimogéneo para dentro da sacristia.


Foi ao bolso e pegou na pequena lanterna, por sorte não se tinha partido com a queda, percorreu aquele quilómetro e meio o mais rápido que lhe era possível.


Quando chegou à saída, desviou a porta pesada e esgueirou-se para a rua, encheu os pulmões de ar, encontrava-se no parque da cidade, numa zona mais recatada e onde o mato era mantido selvagem, fechou a porta e confirmou que o mato a tapava totalmente.


Baixou-se, desmontou a arma e colocou-a na mochila junto das restantes coisas, retirou as luvas e mandou-as também lá para dentro, olhou a sua mão magoada - preciso colocar gelo nisto - colocou a mochila às costas, passou a mão no cabelo e após verificar que não estava ninguém por perto saiu em velocidade de passeio apanhando um caminho que o levaria ao parque de estacionamento existente junto àquele local de lazer em família.


Na rua principal ouviam-se sirenes a passar com urgência. Não deu grande importância, o seu trabalho estava feito.


Uns minutos foi quanto bastou para chegar ao carro, colocou a mochila no banco do pendura e dirigiu-se calmamente em direcção à autoestrada.


_______________________________________


- Como foi o teu dia?


- Muito trabalho, hoje para além das marcações apareceu um senhor com uma avaria difícil, demorou algum tempo para se perceber a origem.


- Ouviste noticias?


- Não, porquê? - Perguntou ao mesmo tempo que fez uma careta à filha e lhe passou a mão pela cabeça.


- A igreja ao lado do colégio onde estudaste, existiu lá um tiroteio hoje.


Sentou-se à mesa onde o jantar fumegava.


- A sério?! Mas alguém foi atingido? Caramba, anda tudo doido...


- Não falam de outra coisa desde a hora de almoço, mas sim, segundo as notícias o padre foi assassinado e o autor fugiu pela janela da sacristia... mas aquilo não foi um assalto, para além da judiciária já lá está o exército e tudo, pelos vistos o padre não era padre e dizem que o atirador deixou um computador com provas em como o padre era um espião, mas sinceramente acho isso invenção das pessoas, onde já se viu um padre espião... ai, o que tens na mão? Está toda negra! O que te aconteceu homem?


- Magoei-me na oficina, entalei a mão numa porta, mas estou bem, parece mais do que realmente é. Estou cheio de fome, vamos mas é dar graças - os 3 fecharam os olhos enquanto ele continuou - agradecemos esta refeição Senhor e agradecemos também a vida simples, calma e longe destes acontecimentos sangrentos, obrigado Senhor - benzeu-se, colocou um sorriso nos lábios e disse - passas-me a salada? Não fazes ideia da quantidade de problemas com catalisadores que têm aparecido na oficina!

Ficção
12.2.23
0

Procurar no Cliques & Letras

Escreva-me

Comentários