O psiquiatra

 

Photo by Sam Moqadam on Unsplash

O dia tinha sido longo, e no entanto tinha mais um paciente para ver!

Hoje estava especialmente cansado, na verdade estava farto, parecia que era psiquiatra desde sempre, mas rapidamente tentou afastar esses pensamentos da sua mente. Não conhecia este paciente, era a primeira consulta, pelo que não fazia ideia do que o esperava.


Ligou para a extensão da assistente e ao ouvir a sua voz questionou – O senhor está na sala de espera? – A resposta foi positiva – então faça-me o favor de lhe indicar o gabinete onde estou, obrigado – desligou e ficou a aguardar.

Encontrava-se aproximadamente há 20 minutos da sala de espera, era a primeira vez que recorria a algo desta natureza, mas tinha fé em Deus e acreditava que tudo iria correr bem, percorria mentalmente os motivos que o levaram ali, mas interrompeu os seus pensamentos quando a senhora que o tinha recebido na clínica surgiu na sala, piscou-lhe o olho e sorridente dirigiu-lhe a palavra – Pode-me acompanhar? O doutor aguarda-o.

Sorriu também, levantou-se e seguiu-a por um pequeno corredor, até que ela parou em frente a uma porta e bateu levemente – Entre! – ouviu-se lá de dentro.

A senhora fez-lhe o gesto para entrar e regressou por onde tinham vindo, já ele abriu a porta lentamente enquanto diz – O doutor dá licença?

– Faz favor! – ao entrar já vinha na sua direcção um homem bem vestido, sem bata de médico, com um sorriso franco e aberto, estendendo a mão para o cumprimentar – muito boa tarde, faz favor de se sentar.

Assim fez e ficou a observar o médico a sentar-se também, aguardava com expectativa o que viria a seguir, e não foi preciso esperar muito.

– Meu caro, antes de entrarmos no assunto que o terá feito vir cá, informo que esta primeira consulta é apenas para o conhecer e perceber o que o motivou a marcar consulta, combinado? – ele anuiu com a cabeça e o médico continuou – De acordo com o que me disser, logo lhe indico se na minha opinião é tema para psiquiatria e qual a abordagem médica a fazer, concorda? – mais uma vez o paciente indicou que sim com a cabeça, pelo que o doutor prosseguiu – então, o que o trás por cá?

Tinha tudo bem ensaiado, tossiu para aclarar a voz, começando a falar lentamente e mostrando-se nervoso – Doutor, eu… bom, eu tenho medo de estar com alguma patologia mental grave! – parou para pensar como continuar o discurso ao mesmo tempo que observava o médico, este mantinha-se com um ar simpático a aguardar – eu, bom… eu, na verdade eu tenho medo de falar pois o doutor vai achar-me louco! – o médico sorriu e encorajou-o:

– Não pense nisso, caso não me conte o que o trouxe por cá, não o consigo ajudar! Pode falar sem receios, não o vou julgar em nada.

– Nesse caso – continuou – e embora seja difícil para mim, confesso-lhe que acho que estou morto! – calou-se aguardando a reacção, mas não existiu qualquer reacção física, e como se manteve calado o médico motivou-o a continuar:

– E o que o leva a pensar que está morto?

– Porque eu recordo-me, ou melhor, caso não seja imaginação minha, julgo recordar-me da minha vida completamente diferente do que ela é agora: lembro-me da minha família, do meu emprego, dos meus amigos, dos locais que frequentava, mas desde há bastante tempo que me encontro nesta cidade, a qual não conheço, não me lembro como vim cá parar, não tenho nada para fazer, não conheço ninguém, nada me é familiar… enfim, tenho sofrido muito e como recentemente vi esta clínica psiquiátrica, decidi marcar uma consulta e pedir ajuda.

O médico tentou continuar a transparecer calma, mas interiormente tinha acabado de gelar por completo com a história que aquele senhor de maneiras educadas e meigas lhe tinha acabado de contar, sentiu-se tonto, espantado, mas obrigou-se a continuar.

– E onde tem dormido desde que está na cidade?

– Esse é outro problema senhor doutor, eu não tenho dormido, não tenho comido nem bebido nada, até porque, pura e simplesmente não tenho sono, não tenho fome, nem sede! Algo se passa de anormal, isto sou eu que morri de certeza! Não acha?

O médico sentiu-se extremamente incomodado, com o coração a bater forte como se fosse explodir, levantou-se de um ápice e contra todos os bons princípios profissionais disse nervosamente ao paciente – lamento mas não me estou a sentir muito bem, teremos de remarcar esta consulta para outro dia, peço desculpa, remarque por favor junto da assistente na recepção e obviamente esta consulta não será cobrada!

No entanto o paciente manteve-se calmo, sorriu docemente, e com voz serena mas firme questionou – nunca tinha colocado essa hipótese consigo próprio pois não?

Neste momento o médico foi invadido por um sentimento de medo incontrolável, a tremer, mas com passo decidido, começou a dirigir-se para a porta enquanto dizia com o tom de voz bastante alterado – por favor saia!

Mais uma vez o paciente manteve-se sereno – de todas as teorias que lhe ocorreram ao longo destes anos, nenhuma estava perto da possibilidade de ter morrido, não é doutor?!

Atónito e de olhar esbugalhado, teve ainda clareza para um último raciocínio com algum discernimento lógico – como é que ele sabe que eu passo por algo similar já há alguns anos?! – pensou, para logo de seguida ouvir o paciente rematar com aquilo que lhe pareceu ser uma resposta directa ao seu pensamento:

– Observámos todos os seus movimentos e temos analisado o seu estado desde que cá chegou. No presente, e como já lá vai bastante tempo desde a última vez que pensou sobre o assunto, achámos necessário vir confrontar as "suas certezas" e oferecer-lhe ajuda.

– Ajuda?! – balbuciou entre dentes, e ouvindo a porta do consultório a abrir-se, olhou nessa direcção, verificando que entravam três pessoas, uma era a assistente que estava habituado a ver na recepção da clínica, os outros dois não fazia ideia.

Enquanto entravam, o paciente continuou com a voz tranquila de quem sabe o que está a fazer – Sim, ajuda. Não acha que já é hora de descansar o seu íntimo? Que tal deixar de andar permanentemente preocupado e obter respostas? A época em que foi psiquiatra já lá vai, agora é a sua vez de ser ajudado. Vai aceitar?

Na verdade não sabia o que responder, confuso com toda a situação, mas embalado pelo tom de voz e necessidade de descanso, acedeu com a cabeça – faz muito bem doutor – ouviu a assistente dizer-lhe enquanto lhe encostava um aparelho qualquer ao braço – fez a melhor escolha possível, descanse, vamos tratar de si – e sentiu-se a adormecer rapidamente, enquanto os dois homens o amparavam.
Ficção
4.2.21
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